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Reflexões sobre a flotilha

02 de Outubro de 2025

Roberto de Mattei

Roberto de Mattei

Reflexões sobre a flotilha

Tendo conhecido o seu epílogo, que oscila entre farsa e tragédia, a história da «Global Sumud Flotilla» impõe algumas reflexões. De acordo com a vulgata mediática, a expedição naval terá sido motivada pela dramática situação do povo palestiniano, sujeito a um brutal ataque israelita na Faixa de Gaza. Dada esta situação de emergência, teria sido necessário criar um «corredor humanitário», mesmo que para tal fosse preciso forçar o bloqueio naval de Israel, considerado ilegítimo por se estender a águas internacionais. Esta apresentação do problema é falsa e hipócrita, porque esquece algumas verdades factuais.

A primeira é a existência de uma guerra assimétrica, iniciada pelo Hamas muito antes de 7 de Outubro de 2023, com o objectivo de destruir Israel, embora a referida guerra tenha tido, nesse dia, uma expressão plástica e simbólica. Não é preciso ser especialista em estratégia militar para saber que, numa situação de guerra, o direito internacional se torna o direito do mais forte, embora os princípios morais, como o respeito pelas vidas inocentes, não devam nunca ser esquecidos. A verdade é que houve uma violação brutal desses direitos por parte do Hamas, à qual Israel respondeu com extrema violência, mas com uma diferença: o Hamas matou deliberadamente cerca de 1200 pessoas inocentes e fez 250 reféns, que usa como escudo, da mesma maneira que usa como escudo instalações hospitalares e escolares, não tanto para se defender, mas para provocar a indignação internacional contra a reacção de Israel.

Pela sua parte, Israel aplica o velho princípio de «olho por olho, dente por dente», um princípio estranho à tradição cristã, mas não ignora a lei mosaica, que proíbe matar inocentes. De acordo com este princípio, a morte de um inocente só pode ser aceite como efeito indesejado de um acto que tem como objectivo eliminar os culpados. Contudo, para ser lícita, esta doutrina – que a moral católica desenvolveu como «princípio do duplo efeito» – tem de respeitar o critério da proporcionalidade. É legítimo questionar se esse critério é respeitado por Israel, mas é inegável que ele é ignorado pela lei islâmica, que condena à morte todos os infiéis, sejam judeus ou cristãos, pelo simples facto de o serem.

Mas a falsidade é demonstrada sobretudo pela circunstância de, em 2008, quando se constituíram as primeiras – assim chamadas – flotilhas, não haver genocídio nem emergência humanitária, mas apenas um duro combate entre Israel e o mundo árabe, que queria a sua destruição. As flotilhas foram um instrumento de acção marítima contra Israel sob a égide do Free Gaza Movement, sobretudo a partir de 2009, a altura em que o governo de Telavive impôs um bloqueio naval nas costas de Gaza para limitar a capacidade do Hamas de introduzir clandestinamente armas e material bélico nesse território. A 31 de Maio de 2010, a Gaza Freedom Flotilla, constituída por seis embarcações e cerca de 700 activistas de mais de 50 países, tentou romper o bloqueio naval, obrigando Israel a intervir militarmente, o que teve como consequência a morte de nove activistas em confrontos no mar; a partir de então, mantendo embora a sua actividade, as flotilhas tornaram-se mais prudentes. Em 2011, houve uma tentativa de lançar a Freedom Flotilla II – Stay Human, mas muitos navios não chegaram a partir ou foram interceptados. Nos anos seguintes, foram organizadas missões como o Women’s Boat to Gaza (2016) e a Freedom Flotilla III (2015). Em 2018, a Freedom Flotilla Coalition lançou uma nova operação contra o bloqueio naval, que foi interrompida pelas forças israelitas.

À semelhança das anteriores, a actual flotilha não tem uma identidade nacional única; é produto de uma coligação transnacional e fluida, que reúne militantes de extrema-esquerda, activistas LGBTQ, ecologistas, jornalistas e alguns parlamentares. A natureza ideológica destas coligações nada tem de misterioso; de facto, uma parte significativa das flotilhas, em particular a de 2010, com o navio Mavi Marmara, foi organizada ou apoiada pela ONG turca IHH (İnsan Hak ve Hürriyetleri ve İnsani Yardım Vakfı), uma associação com ligações históricas aos meios islamistas turcos, próximos da Irmandade Muçulmana, dos quais o Hamas é a expressão na Palestina. As flotilhas apresentam-se como comboios de activistas, membros de organizações não-governamentais e voluntários, que exploram a sua retórica humanitária e a sua aparente indeterminação de meios e objectivos para obter uma vantagem política evidente.

Para além do facto de, nos últimos anos, alguns organizadores das flotilhas terem tido contactos directos e documentados com dirigentes do Hamas, é evidente o benefício que este movimento delas retira: cada missão que desafia o bloqueio israelita é usada como prova do apoio internacional à causa palestiniana. O Irão, apesar de não ter um papel directo na organização dos navios, usa a narrativa das flotilhas para legitimar a sua posição anti-israelita e antiocidental; e as redes que promovem as flotilhas contam com activistas muçulmanos na Europa, na América do Norte e na Ásia, reforçando a dimensão transnacional islâmica destas iniciativas, que não se limita a Gaza e ao Médio Oriente, mas inclui seguidores de Alá a nível global.

As organizações promotoras desta expedição naval definiram-na como um prolongamento das flotilhas anteriores, tendo como objectivo declarado «derrubar o bloqueio naval ilegal». Trata-se, portanto, de um acto explicitamente bélico; não pelo uso de armas, mas pelo seu objectivo final, que é provocar um confronto em mar aberto contra um inimigo armado. Não estamos perante um «acto humanitário» a favor do povo palestiniano, mas de uma iniciativa bélica, no contexto de um cenário de guerra que se estende dos mares do Norte ao Médio Oriente, e que é bem possível que se alargue em breve à área indo-pacífica.

A guerra em curso tem como protagonistas dois conglomerados de nações: de um lado, os Estados Unidos da América, os países da União Europeia e o Estado de Israel; do outro, a China, a Rússia, a Coreia do Norte e uma parte do mundo árabe. Mas este confronto não pode ser restringido a uma polarização geopolítica Ocidente/Oriente, nem a um conflito entre as democracias liberais ocidentais e as autocracias orientais. Quem interpretar a história segundo os ensinamentos de Santo Agostinho em De Civitate Dei terá de ler os acontecimentos actuais como uma guerra religiosa e cultural, mais ampla e mais antiga, entre aqueles que defendem o que resta da civilização cristã e aqueles que pretendem extirpar as suas raízes.

Esta guerra, que vem de longe, é hoje uma guerra total, e é-o por várias razões: porque é planetária; porque não distingue militares e civis; porque só terminará com a aniquilação de um dos dois contendores. E também é uma guerra total porque pode culminar numa catástrofe nuclear, e porque se estende do campo militar ao campo económico, da informação à tecnologia digital.

Os interesses de Putin e de Xi Jinping na questão de Gaza não são geoestratégicos, mas psicológicos: mostrar ao mundo a fraqueza do chamado Ocidente e impedir que o vigor com que Israel se defende possa contagiar aqueles que abandonaram a Crimeia e o Afeganistão à sua sorte.

Tudo isto acontece justamente numa altura em que Donald Trump propõe o primeiro plano credível de paz para o Médio Oriente, um plano que é aceite pela quase totalidade dos países árabes. A acção terrorista de 7 de Outubro contribuiu para o fracasso dos chamados «Acordos de Abraão», de 2020, desejados pelo próprio Trump. Nesse atentado, os líderes do Hamas não colocaram em risco a própria vida, mas também não previram que a reacção de Israel fosse tão dura. Hoje, sabem que, se rejeitarem a proposta americana, «o inferno se abaterá» sobre eles, na gráfica expressão de Trump. A pergunta a fazer agora é se o Hamas seguirá o caminho do suicídio colectivo ou, como é mais provável, evitará imolar-se, deixando o ridículo e o drama para o que resta da desorganizada flotilha.

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