O processo desencadeado pela Revolução francesa alcançou o mundo luso-brasileiro, em especial, nos acontecimentos que tiveram lugar no Porto em 1820. O Sinédrio, formado essencialmente por juristas que haviam sorvido as ideias liberais em Coimbra, criado em Janeiro de 1818, procurou difundir o ideário revolucionário.
A Contra-Revolução luso-brasileira não estava sistematizada. Nasceu de atavismos e intuições de alguns personagens da elite tradicional que respondia às novas ideias de diversas formas, atrasando assim a marcha da Revolução que, na segunda década de Oitocentos, avançou e recuou em diversos momentos. A guerra civil, iniciada em finais da década, foi a consequência cruenta das batalhas de tendências e ideias que podem ser percebidas com razoável clareza após a transmigração da Família Real para o Brasil.
A ação ideológica revolucionária tivera um grande impulso já na última década do século XVIII. Regista embaixador português em Paris, Vicente Sousa Coutinho, que tivera notícia da edição traduzida da Constituição de 1791, com uma tiragem exorbitante, de 12 000 exemplares destinada também ao mercado português, assim como de milhares de catecismos revolucionários. Circularam clandestinamente, em Espanha e Portugal, versões traduzidas das Constituições de 1791 e 1793 e da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, para além de inúmeros jornais estrangeiros, folhetos e os ditos catecismos revolucionários, como o famoso “Credo da República Lombarda”, apreendido pelo corregedor da comarca de Barcelos, em 1797, a um advogado da terra e que começava, um tanto sacrilegamente, assim: “Creyo na Republica Francesa huna e indevizivel creadora da igualdade e liberdade, no general Bonaparte, seu filho nosso único defensor”.
É notório que os soldados de Napoleão levavam canhões e ideias revolucionárias por onde passavam.
Depois da proclamação do Império, em 1804, a hegemonia militar francesa no continente conduzirá à abertura de uma frente militar na Península Ibérica, frente que, no caso português, foi meticulosamente preparada no plano diplomático. Um cabo-de-guerra, um ex-ajudante de campo de Napoleão, o general Jean-Andoche Junot foi nomeado, em 1805, embaixador em Lisboa. O homem que vinha preparar a investida militar de 1807, por sinal por ele dirigida, trazia credenciais alargadas, de tal modo que arriscou contar espingardas antes da guerra, isto é, negociou apoios, certificou-se das clivagens internas na corte, das quebras de fidelidade dos Grandes em relação à realeza, da simpatia da elite mais politizada à causa revolucionária, encontrou um grupo interessado na tradução do Código Civil de 1804 e estabeleceu uma rede de contactos no seio das mais influentes instituições do reino.
O pedido de uma Constituição para Portugal a Napoleão, a chamada súplica constitucional, foi levada a cabo por um grupo afrancesado composto pelo médico Gregório José de Seixas, Ricardo Raimundo Nogueira, reitor do colégio dos nobres, Simão Cordes Brandão e Ataíde, professor de direito canónico aqui em Coimbra, Bento Pereira do Carmo, juiz de fora em Ançã e outros jurisconsultos. Isto demonstra a penetração da mentalidade revolucionária na Universidade, em especial nos juristas.
A súplica visava a igualdade civil e fiscal e a liberdade de imprensa e de opinião, assim como a liberdade de culto. Tais seriam os princípios fundamentais do Estado de direito. Marcava a ruptura com a sociedade hierárquica e sacral, portanto anti-igualitária e anti-liberal.
A recepção do Code Civil levaria, a partir da ideologia igualitária, à abolição dos privilégios testamentais, fazendo desaparecer o morgadio – fonte de protecção da Família tradicional. O divórcio instaurado, então, também desfecharia um grande golpe na Família. Napoleão afirmara que com o seu Code Civil acabaria com as grandes famílias em uma geração...
Todo o Antigo Regime era posto em causa e, ipso facto, as bases fundamentais da monarquia orgânica portuguesa. Era a marcha da Revolução que colocava em causa os valores tradicionais. Contudo, a forma mentis destilada por séculos de Cristandade na península ibérica provocou uma Contra-Revolução.
Três personagens históricos representam a resistência às ideias liberais e actuaram na defesa da tradição político-jurídica luso-brasileira. São eles: a Rainha Carlota Joaquina, o Ministro Thomaz Antonio Villanova Portugal (1755-1839) e o Cardeal Patriarca de Lisboa Dom Carlos da Cunha e Meneses(1759-1825).
O percurso de cada um destes personagens oferece elementos de interpretação das formas de criação de embaraços para o processo de ruptura que então de desenhava no panorama político-jurídico.
Refiram-se, assim, três reações ao ideário revolucionário que fazem ver a força da tradição no combate Revolução/Contra-Revolução.
O Cardeal-Patriarca, segundo as cortes, excluíra-se da nação ao recusar o juramento que vinculava o pacto social fundamental. Tal recusa teve lugar no dia 29 de Março de 1821. As cortes, então, o desnaturalizaram e decretaram a perda da cátedra prelatícia e de suas temporalidades e prerrogativas. Votaram os liberais do vintismo ultra-liberal que « toda a Autoridade ou indivíduo que se recuse ao juramento das Bases da Constituição, sem restrição alguma deixa de ser português» e «que deve por consequência sahir do Reino». Dom Carlos abandonou o Reino e seguiu primeiro para o Buçaco e depois para Baiona em fins de Maio e o Governo ordenou de imediato ao Colégio Patriarcal que retirasse o nome do Patriarca da oração da colecta da Santa Missa. Liberalismo exemplar! E o Patriarca nem sequer fora radical – apenas dera ao seu procurador a ordem de jurar as bases com restrição ao art 10º - requerendo a censura eclesiástica em matérias de Religião – e ao 17º - por exigir a formulação da religião católica como a «única» dos portugueses e sem «alteração ou mudança alguma em seus dogmas, direitos e prerrogativas». Deixou de ser português o prelado pela apoucada tolerância dos liberais, paladinos da tolerância. Regressou a Portugal apenas em 1823.
Thomaz António de Villanova Portugal foi o Homem de confiança de Dom João acumulando várias pastas – a do Reino, o Erário Régio e dos Negócios Estrangeiros e Guerra – ao final da estada do monarca no Rio de Janeiro. Opôs-se frontalmente às ideias liberais e aos seus proponentes como o conde de Palmela, e promoveu intensa campanha contra as sociedades secretas. Apoiava com vigor a permanência da corte no Brasil como forma de preservar as prerrogativas da Coroa e da monarquia orgânica.
A convocação das antigas cortes pelo monarca a 21 de Fevereiro de 1821 foi uma tentativa frustra de revitalizar as concepções do Antigo Regime. Foi do Ministro Villanova Portugal a idéia.
Não obteve sucesso nos seus intentos e regressou a Portugal com a comitiva de Dom João VI, sendo proibido de desembarcar pelas Cortes, enfim pelos liberais…
Passo a tratar da faceta contra-revolucionária da Rainha Carlota Joaquina, que nasceu a 25 de Abril de 1875. Na Biblioteca Nacional de Lisboa encontra-se um ms. o Documento II-30, 24,16, intitulado: O caso da Rainha: recusa de Carlota Joaquina em assumir a nova constituição (S.l., s.d.). São 65 folhas com a narração dos fatos. Mereceria publicação, máxime durante a efeméride.
A recusa do juramento da Rainha foi acto de resistência a um regime político com o qual sua mentalidade, sendo coerente, não podia aceitar.
O decreto que obrigava ao juramento da Constituição todos os funcionários públicos e possuidores de bens nacionais, outrora denominados bens da Coroa, fora promulgado no dia 1 de Outubro de 1822. Tratava-se do art. 13 da lei nº 236. A cerimônia do dito juramento deveria ser levada a cabo nas igrejas de todas as aldeias, vilas e cidades do Reino, e decorreria de 1 de Novembro a 3 de Dezembro deste ano. A sanção prevista para os refratários era de perda da cidadania, expulsão do Reino, acompanhada da perda de todas as dignidades inerentes à posição que ocupassem.
A Rainha foi admoestada para fazer o juramento. A 27 de Novembro recebeu um ultimatum, ao qual respondeu com altaneria. Não se deixou intimidar. Por razões de consciência e pelo engendrado anti-liberalismo não jurou a constituição.
O Conselho de Estado foi convocado no dia 29 de Novembro. Conclui que as penas deveriam ser aplicadas à Rainha. Contudo, tendo-se inaugurado a pouco a separação dos poderes a competência para tanto seria do poder judicial. Dois conselheiros divergiram afirmando que não havia delicto... mas tão somente o facto de não querer aderir ao novo pacto social.
No dia 2 de Dezembro alguns dos conselheiros vieram rectificar os seus pareceres afirmando que não era claro, segundo a lei, que a Rainha fosse obrigada a prestar juramento, tendo-o já feito Dom João.
No dia 4 de Dezembro foi promulgado o decreto no qual a Rainha perdeu os direitos civis e políticos.
Surpreende que não se tenha argumentado que obrigar a aderir a um pacto social novo era acto de violência, acto totalitário, disfarçado sob as vestes de adesão à liberdade.
Por estar doente a Rainha permaneceu no Palácio do Ramalhão, em Sintra, onde deveria ficar até recuperar a saúde e, então, deixar Portugal.
A espada liberal passava, então, muito perto do trono. A desdita da Rainha tornou-se o assunto em todos os periódicos. Em Fevereiro de 1823 foi publicada uma carta da Rainha a Dom João:
Senhor, recebi esta noute pelas maõs dos Vossos Ministros hum Decreto para deixar o vosso reino. He pois para me mandar desterrada que V.M. me obriga a descer do trhono a que me chamou. De todo o meu coração eu vos perdoo, e me compadeço de V.M. Todo o meu desprezo e aversão, ficará reservado para os que vos rodeião, e que vos enaganarão. Na terra de desterro serei eu mais livre, que V.M. em vosso Palácio. Eu levo comigo a Liberdade: o Meu coração não está escravizado; Elle já mais curvou diante altivos súbditos que teem ousado impor leis a V.M. e que querem forçar a minha consciência a dar hum julgamento que ella desaprova(...) Em breve partirei: mas onde dirigirei os meus passos para achar um azilo sossegado? A minha pátria, como a vossa veio a ser vítima do espírito da revolução. Meu irmão, como V.M. he hum captivo coroado, e em vão a sua jovem espoza requer o previlégio de se lamentar comigo em algum pio retiro (...) Ao aproximar-se a primavera deixarei o vosso reino, a terra aonde reinei, e aonde fiz algum bem. Hirei e participarei dos perigos do Meu Irmão. Eu lhe direi: não poderão dobrar a Minha resolução; estou em desterro, mas a minha consciência está pura, pois Me lembro do sangue que corre nas minhas veias. Adeos! Senhor.
Mas afinal a Rainha não deixou Portugal e na Primavera de 1823, no mês de Maio, a Vila-Francada restaurou o regime tradicional em Portugal.
Frei Fortunato de São Boaventura, então, fez da Rainha e do Cardeal-Patriarca as potestades da Contra-Revolução. A Rainha foi exaltada como heroína pela resistência aos «impiedosos liberais».
O gesto da Rainha entrou na memória da Contra-revolução portuguesa.
A questão do juramento e a aparição da imagem de Nossa Senhora da Rocha, no Rio Jamor, formaram uma importante bandeira da militância contra-revolucionária.
A resistência às leis liberais é uma das facetas da Contra-revolução e permite a análise subtil de um momento de ruptura na historicidade do Direito.
O Decreto de 4 de Dezembro de 1822, que condenara a Rainha, foi revogado em Vila-Franca a 2 de Junho de 1823.
O desmantelamento do regime liberal vintista naquela quadra contou com diversas ações. Pode-se afirmar que a resistência ao juramento da Constituição, seja de suas bases, no caso do Cardeal-Patriarca, seja da própria Constituição já em vigor, pela Rainha, constituiu acto heróico e fez dos resistentes símbolos do ultramontanismo peninsular, favorável à monarquia sacral, metafisicamente anti-igualitária e anti-liberal.