José Antonio Ureta
Julio Loredo
A primeira parte deste artigo explorou alguns dos temas-chave da Primeira Assembleia Eclesial da América Latina e do Caribe, incluindo a amarga crítica ao «clericalismo» e a apresentação da sinodalidade como panaceia, conferindo aos leigos um papel decisivo na governação da Igreja e aceitando mulheres nos ministérios ordenados. Nesta segunda parte, exploraremos as consequências pastorais e disciplinares destas propostas para a Assembleia Eclesial Universal de 2028, convocada pelo Papa Francisco da sua cama do Hospital Gemelli.
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1) O dilema teológico
Voltando ao documento Síntese Narrativa, a secção sobre o diaconado feminino apresenta uma explicação que permite esclarecer o dilema teológico entre o «clericalismo» do passado e a sinodalidade do futuro, onde se diz: «É importante clarificar de que eclesiologia estamos a falar: da representatio Christi individualista, que estava em vigor antes do Vaticano II e voltou a estar depois dos anos 90, ou da eclesiologia do Vaticano II e de uma pneumatologia ministerial. As perspectivas destas eclesiologias são muito diferentes e devemos basear-nos na eclesiologia do Vaticano II»1.
Por outras palavras, os participantes de 2021 propuseram as teorias de Hans Küng e Leonardo Boff, cujos livros sobre o assunto foram oficialmente condenados pela Santa Sé.
2) Acolhimento das «minorias sexuais»
Os escritos do Papa Francisco e dos responsáveis pelo Sínodo sobre a Sinodalidade insistem que uma Igreja sinodal exige, para além de uma reforma das estruturas internas, uma «conversão pastoral» ad extra, própria de uma Igreja em saída que, em nome da diversidade, acolhe «todos, todos, todos», em particular as «minorias sexuais».
A Primeira Assembleia Eclesial da América Latina e do Caribe fez eco desta insistência, concluindo que é necessário «deixarmos de ser uma Igreja legalista e tornarmo-nos uma Igreja-povo, que escuta, acolhe e caminha com o povo (sinodal) com um coração aberto, compassivo, um coração de carne» (p. 213).
Nas secções temáticas sobre a sinodalidade, os delegados à Assembleia criticaram «a falta de atenção e de acompanhamento pastoral dos casais separados ou divorciados, que, em alguns casos, voltam a casar ou coabitam sem se casarem» (p. 212), porque na Igreja «são excluídos aqueles que se considera estarem em situação de pecado, como os que fracassaram na sua vida conjugal; é negada aos separados a participação nos sacramentos» (p. 115), uma discriminação que é injusta, porque «uma família tradicional não é superior a uma família não tradicional e vice-versa. Ambas precisam de ser acompanhadas e de se sentir parte de uma Igreja inclusiva, compreensiva e tolerante» (p. 212).
No entanto, a chamada minoria excluída que mais chamou as atenções foi a dos marginalizados devido à sua orientação sexual e dos transexuais. O texto da secção sobre democracia lamenta a falta de «integração da diversidade sexual com plenos direitos eclesiais» (p. 169) e a «falta de uma linguagem mais pluralista que permita a inclusão das minorias» (p. 165).
Este tema está amplamente reflectido na Síntese Narrativa, que exprime «a dor pela indiferença da Igreja em relação à questão da diversidade sexual. Esta é a dor das pessoas LGBTIQ+, que se sentem rejeitadas pela Igreja por causa da sua orientação sexual. [É] a lentidão, a insensibilidade, a intolerância e a falta de respeito e aceitação da hierarquia da nossa Igreja com estas pessoas, bem como a falta de esforço para compreender o mundo LGBTIQ+» (p. 198).
A Síntese Narrativa elogia, pois, uma pastoral da diversidade sexual, cuja missão é «procurar o reconhecimento e a valorização da diversidade sexual e da identidade de género como atributos constitutivos da sociedade e da Igreja» (p. 198); por sua vez, isto exige «reconhecer a realidade do povo de Deus, que é diversificada em matéria sexual, e compreender que as pessoas da diversidade sexual – pessoas LGBT e suas famílias – também precisam de acompanhamento psico-espiritual» (p. 198).
Esta legitimação deverá conduzir a uma mudança na doutrina, uma vez que «é difícil levar a cabo uma integração ou um acompanhamento enquanto a realidade da diversidade sexual não for abordada, reconhecida, verbalizada e integrada no discurso» (p. 199). Perante o drama do suicídio de pessoas LGBTIQ+, «não é possível encontrar nenhum argumento sustentável para a não inclusão da diversidade sexual no magistério, na teologia e nas crenças populares» (p. 200).
Um participante no fórum comentou: «Não percebo porque é tão difícil aceitar outras opções de vida, uma vez que cada pessoa é livre de decidir a quem amar: “ONDE HÁ AMOR, AÍ ESTÁ DEUS”» (p. 200). Outro, posicionando-se como exegeta, afirma: «Do ponto de vista teológico, há hoje estudos sérios sobre a Bíblia e sobre hermenêutica que compreendem que este livro tem diferentes tipos de linguagens literárias, o que sugere que nem tudo o que nele está escrito deve ser interpretado de forma literal» (p. 200).
São necessários novos processos educativos para «quebrar os moldes tradicionalistas e abrir espaços na realidade eclesial para acolher esta população marginalizada e tornada invisível. A educação do clero e da hierarquia no domínio da diversidade sexual é fundamental» (p. 198).
Além disso, tem de haver um «reconhecimento da diversidade sexual dos consagrados e dos leigos, para responder à vocação de homens e mulheres da diversidade sexual LGBT+» (p. 198).
Ao mesmo tempo, é desejável «procurar alianças e encontros com outros grupos, que não são necessariamente católicos, mas que também lutam por causas dignas que dizem respeito às pessoas LGBTIQ+» (p. 199).
3) Outros temas quentes
Abstemo-nos deliberadamente de abordar a multiplicidade de comentários e propostas sobre os temas quentes da América Latina relacionados com questões sociais, como as desigualdades económicas, a ecologia, o indigenismo, a imigração, o narcotráfico e outros. Limitamo-nos a assinalar que, em todas estas frentes, a Primeira Assembleia Eclesial da América Latina e do Caribe adopta sistematicamente o quadro ideológico de análise marxista típico da Teologia da Libertação.
A secção temática 2.18, inteiramente dedicada ao tema da libertação, lamenta a «rejeição, incompreensão e até perseguição de grupos progressistas, como o da Teologia da Libertação» (p. 148). Havia um fórum específico sobre esta última, que insistiu na ideia de que «o legado da Teologia da Libertação latino-americana é o regresso a uma espiritualidade de base, situada no contexto histórico dos nossos povos» (p. 169).
Por sua vez, no subtema «Cultura do descarte», propõe-se explicitamente «promover uma libertadora Teologia da Libertação que nos permita conectar de forma eficaz com o projecto libertador de Jesus, que nos leve a reconhecer as estruturas de poder e de opressão, que facilite o encontro e o diálogo, e promova gestos e atitudes de esperança para vivermos um ministério eclesial vivo» (p. 25).
Para tal, é necessário «retomar a Teologia da Libertação sem medo da censura, mas com a certeza de estar no caminho certo» (p. 25), pois as «experiências de missão e de acção evangelizadora» (p. 140) desta teologia são uma fonte de esperança e ajudarão a «encontrar caminhos de compreensão e unidade em volta da Teologia da Libertação e dos processos de renovação eclesial em curso» (p. 149), uma vez que «a Teologia da Libertação não está morta na América Latina» (p. 149). De facto, ela encontrou refúgio na Primeira Assembleia Eclesial da América Latina e do Caribe.
Por falta de espaço, também deixámos de lado outros temas igualmente importantes, como o sincretismo religioso – «O inestimável contributo dos povos indígenas, a sua sabedoria ancestral, a sua visão cósmica e o seu modo de vida comunitário, que nos mostram outros caminhos para uma relação mais harmoniosa com a nossa casa comum, com os outros e com o Transcendente» (p. 30) –, bem como o ecumenismo e o diálogo intercultural sem barreiras – «Juntos, devemos abrir-nos a Deus como Pai de todos, uma verdade que transcende as várias interpretações religiosas sem se fechar a priori em princípios ideológicos, como ensinou o Concílio Vaticano II» (p. 126).
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4) Transparência inicial, opacidade final
De acordo com o Cardeal Barreto e Mauricio López, o colocar a palavra de Cristo no centro e o esforço de experimentar novas formas de caminhar juntos «foram as dimensões mais importantes da assembleia e evitaram que [os delegados] caíssem na tentação do clericalismo, que poderia ter levado a uma tentativa de replicar o modelo das conferências do CELAM, ou seja, colocar um documento único e definitivo no centro de toda a experiência». Pelo contrário, «a transparência do processo e o empenho na escuta recíproca manifestaram-se na apresentação dos resultados da Síntese Narrativa da Escuta, que decorreu com total abertura, para que todo o povo de Deus pudesse conhecer o trabalho realizado a partir das suas vozes e dos seus contributos. Trata-se de uma novidade, uma vez que tais contributos do povo de Deus têm habitualmente ficado confinados ao âmbito interno dos organismos eclesiais; aqui, pelo contrário, o respeito pela transparência e a reciprocidade nas consultas constitui um precedente significativo»2.
Apesar desta intenção declarada, as fases subsequentes da Primeira Assembleia Eclesial não reflectiram a escuta mútua. O já referido Documento para o Discernimento Comunitário – preparado como apoio à reflexão por uma equipa presidida por D. José Luis Azuaje e pela Irmã Birgit Weiler M.M.S., equipa que também incluía Mauricio López – foi redigido «a partir das múltiplas contribuições do Povo de Deus no processo de escuta»3, mas não reflecte fielmente o conteúdo nem o tom da Síntese Narrativa da Escuta.
No que diz respeito ao conteúdo, todos os comentários, análises e propostas são artificiosamente inseridos no quadro do Documento Final da Assembleia de Aparecida, cujo contexto teológico e interpretativo, mais refinado, é muito mais moderado do que o material original. A mesma moderação transparece também no tom, muito menos reivindicativo e agressivo do que o adoptado pelos participantes na fase de escuta.
Em relação ao clericalismo, desaparece a crítica a uma casta sacerdotal opressiva que ocuparia o topo de uma Igreja rigidamente hierarquizada e medieval, bem como a exigência de a substituir por uma estrutura horizontal em que prevaleça a dignidade igualitária. A linguagem da luta de classes intra-eclesial é substituída pelo simples reconhecimento do «abuso de poder que favorece relações verticais, abusivas e discriminatórias; o facto de os padres e os bispos não partilharem suficientemente com as suas comunidades os processos de discernimento e de decisão»4; e a proposta de «reformular todos os serviços eclesiais, incluindo o do ministério ordenado, em harmonia com a tradição da Igreja, e a necessidade de a actualizar, ou seja, de um aggiornamento da mesma»5.
Por outro lado, a sinodalidade deixa de ser uma viragem coperniciana destinada a abandonar uma Igreja monárquica e adoptar novas estruturas eclesiais onde impere uma democracia que imponha limites ao exercício do poder. Resta apenas a noção de que «a sinodalidade é um modo natural de ser Igreja, no qual os leigos “são parte activa e criativa na execução de projectos pastorais em benefício da comunidade”»6.
Mais surpreendente ainda é o facto de terem desaparecido os muitos e beligerantes apelos à ordenação sacerdotal e diaconal de mulheres, substituídos por um lacónico: «Não existe uma reflexão séria sobre a possibilidade de ministérios ordenados para as mulheres, apesar de a Igreja ser povoada na sua maioria por mulheres»7. É reiterada a urgência de «apelar a mudanças no direito canónico e na estrutura eclesial, para que as mulheres possam assumir ministérios eclesiais» e «reflectir seriamente e abrir-se à possibilidade de ministérios ordenados para as mulheres, ao serviço da Igreja dos pobres».8 No entanto, nunca é especificado que estes ministérios necessários são o sacerdócio e o diaconado.
As referências a uma mudança de doutrina na abordagem à diversidade sexual e à plena aceitação da comunidade LGBTIQ+ também desaparecem, ficando apenas a seguinte observação: «Várias vozes exprimem a dor de perceberem indiferença e rejeição por parte da Igreja em relação às questões da diversidade sexual» e «consternação» pelo facto de «após cinco anos de Amoris lætitia, se terem feito tão poucos progressos, “especialmente no que diz respeito à formação do clero e da hierarquia”»9.
Se o sensus fidei é efectivamente «um dom profético do Espírito de Jesus Cristo que torna possível a infalibilidade na fé e o testemunho activo dos crentes em matéria de fé, de doutrina e de vida»10, como reafirma o Documento para o Discernimento Comunitário, não se percebe por que razão o conteúdo e o tom dos testemunhos recolhidos na fase da escuta foram distorcidos e moderados. Tanto mais que os autores do Documento afirmam que a Síntese Narrativa da Escuta «é um reflexo explícito dos sentimentos de fé do Povo de Deus e da voz do Espírito que devemos discernir neste processo de assembleia»11. Porquê, então, censurar a voz do Espírito que emergiu da Síntese Narrativa da Escuta?
É impossível estabelecer com segurança que influência tiveram a Síntese Narrativa e o Documento para o Discernimento Comunitário nos relatórios e nos grupos de trabalho durante a Assembleia Eclesial. Imediatamente após a conclusão da Assembleia, o Cardeal Barreto lamentou: «Faltou-nos tempo para assimilar os conteúdos do processo de escuta»12.
O já citado artigo que o cardeal jesuíta publicou, em colaboração com Mauricio López, em La Civiltà Cattolica sublinha: «Faltou uma preparação mais profunda dos delegados à Assembleia. De facto, constatámos que um bom número deles não tinha feito um exercício sério de leitura orante e reflexiva em preparação para a experiência de discernimento».
A leitura dos comunicados à imprensa e a visualização dos vídeos diários sobre o evento não permite perceber como se desenrolaram efectivamente as «sessões de discernimento comunitário». Podemos supor que foram semelhantes às sessões das «conversas no Espírito» do Sínodo sobre a Sinodalidade, realizado em Roma. Em todo o caso, uma coisa é certa: não se chegou a consenso. O Cardeal Barreto e Mauricio López lamentam que «durante a assembleia, a par de fortes sinais de desejo e vontade de mudança, foram também evidenciadas certas atitudes de clericalismo, já identificadas anteriormente, que não favoreceram o processo»13.
Estes debates não conduziram à formulação de um texto a submeter a votação. Apenas foi publicado um documento com 41 desafios, redigido por uma Comissão de Síntese. Alguns desses desafios são dignos de louvor, como o n.º 4: «Promover e defender a dignidade da vida humana desde a concepção até à morte natural» e o n.º 21: «Promover, acompanhar e reforçar a centralidade da família na sociedade humana». Outros, como o n.º 13, são bastante genéricos: «Reforçar a dimensão social da evangelização»14.
No entanto, os desafios são, na sua maior parte, tendenciosos, tanto os que dizem respeito a questões temporais (ecologia, migrações, pobreza), como as que tocam em questões eclesiais. Destacamos alguns deles, agrupando-os de acordo com a nossa ordem temática:
Desafios pastorais |
Linhas pastorais |
«19. Viver a comum dignidade da nossa vocação baptismal, a fim de ultrapassar o clericalismo e o autoritarismo». |
«Facilitar um processo de construção pastoral, pessoal e comunitária, que permita reconhecer as feridas causadas pelo clericalismo e pelas relações autoritárias verticais». |
«9. Renovar, à luz da Palavra de Deus e do Vaticano II, o nosso conceito e a nossa experiência de Igreja como Povo de Deus, em comunhão com a riqueza do seu ministério, evitando o clericalismo e promovendo a conversão pastoral». |
«[…] implementando vários âmbitos de comunhão e participação em paróquias, santuários e capelas, promovendo a co-responsabilidade na animação missionária». |
«5. Reforçar a formação para a sinodalidade, a fim de erradicar o clericalismo». |
«Promover a participação co-responsável e a valorização dos carismas nas elaborações e nas decisões nos diversos espaços eclesiais». «Promover a formação para a sinodalidade, necessária a um processo consensual de decisão». |
«15. Promover de forma mais decidida as comunidades eclesiais de base (CEB) e as pequenas comunidades, como experiências de Igreja sinodal». |
«Descentralizar a estrutura e a acção eclesial-paroquial […]» |
«3. Promover a participação activa das mulheres nos ministérios, no governo, no discernimento e no processo eclesial de tomada de decisões». |
«[…] contribuindo para o discernimento sobre o diaconado feminino e sobre os novos ministérios». |
«24. Dar prioridade a uma pastoral familiar que acolha as novas expressões [familiares], a complexidade e a diversidade». |
«[…] integrando com misericórdia e ternura as diversas modalidades de família: monoparental, união de facto e com diferentes orientações sexuais». |
Como se pode ver, os temas em discussão eram os mesmos. No entanto, o documento resultante do discernimento comunitário era muito mais moderado, tanto nas propostas como no tom, do que os textos originais da fase de escuta.
Com base nesses textos, o próprio Conselho Episcopal Latino-Americano e Caribenho (CELAM) publicou um documento intitulado Para uma Igreja Sinodal em Saída para as Periferias: Reflexões e Propostas Pastorais Emergentes da Primeira Assembleia Eclesial da América Latina e do Caribe. Este documento especifica, na apresentação, que «não é um documento conclusivo» como os que resultaram das Conferências Episcopais da América Latina (Medellín, Santo Domingo, Aparecida, etc.), mas apenas uma «sistematização daquilo que emergiu no diálogo dos participantes em quase uma centena de grupos de trabalho»15; no entanto, «possui a autoridade de ser um texto que reúne as conclusões de uma Assembleia convocada e realizada pelo CELAM, cuja presidência decidiu a modalidade da sua elaboração»16, e de ter sido aprovado pelos representantes das conferências episcopais reunidos em assembleia extraordinária em Julho de 2022.
Não é possível verificar a correspondência deste texto oficial com o que foi efectivamente acordado nos grupos de trabalho da Assembleia Eclesial de Novembro de 2021, uma vez que o documento foi publicado em Outubro de 2022, quase um ano após a Assembleia, e passou pelo filtro da Equipa de Reflexão Teológico-Pastoral do CELAM, «que trabalhou durante meio ano, a estudar e assimilar a documentação e as intervenções, aprofundando e sistematizando os conteúdos, ordenando e projectando as propostas de evangelização»17.
Este filtro produziu um texto decididamente mais moderado do que os anteriores em todos os temas controversos. Assim, o clericalismo e o autoritarismo já não são fruto da estrutura hierárquica da Igreja, mas de uma deformação ideológica ou de uma vontade desordenada de poder de alguns clérigos; a sinodalidade não visa relações horizontais e democráticas, mas insere-se na colegialidade episcopal, reservando aos leigos um papel vagamente referido, como sujeitos eclesiais; é necessário criar novos ministérios laicais, acessíveis às mulheres, mas, ao mesmo tempo, é necessário cultivar a alegria do ministério ordenado – episcopal, presbiteral e diaconal –, sem nenhuma referência à questão do sacerdócio ou do diaconado feminino; por fim, a sigla LGBTIQ+ desaparece do texto, o qual se limita a afirmar, a respeito da «diversidade sexual», que «várias vozes exprimem a dor de perceberem indiferença e rejeição por parte da Igreja em relação a esta questão»18, sem especificar se essa dor é ou não legítima.
Em última análise, tal como aconteceu com o Sínodo sobre a Sinodalidade de 2021-2024, e para usar as palavras de Esopo, «a montanha pariu um rato». Como veremos, isto levanta uma questão espinhosa para os organizadores da Assembleia Eclesial Universal de 2028.
5) Um beco sem saída
De facto, se partirmos do pressuposto de que o Povo de Deus é infalível in credendo graças ao sensus fidei, e que da escuta deste povo surgem propostas revolucionárias contrárias ao dogma católico, só há duas explicações possíveis:
- A consulta não era representativa do verdadeiro Povo de Deus, mas de uma minoria infectada pelo zeitgeist (o espírito do tempo).
- A consulta foi representativa e, por isso, o dogma deve evoluir para se adaptar ao sopro renovado do Espírito Santo.
No primeiro caso, as autoridades eclesiásticas devem reconhecer que se trata de um problema antigo, que teve início nos primeiros sínodos diocesanos que, imediatamente a seguir ao Vaticano II, procuraram revolucionar a Igreja. Comentando o Sínodo de Würzburg (1971-1975), o jovem teólogo Joseph Ratzinger dizia: «As pessoas queixam-se de que a grande maioria dos fiéis, em geral, demonstra pouco interesse pelas actividades do sínodo […] [mas] a mim esta prudência parece-me mais um sinal de sanidade. […] Em suma, os fiéis não querem saber como é que os bispos, os padres e os católicos das altas esferas fazem o seu trabalho, estão interessados no que Deus quer deles na vida e na morte, e no que não quer»19.
Se os nossos bispos tiverem a coragem de admitir a não representatividade da consulta e, consequentemente, o fracasso do custoso exercício de escuta, duas coisas se tornam necessárias: em primeiro lugar, devem distanciar-se dos colaboradores infectados pelo Modernismo, que enchem as estruturas pastorais da Igreja; em segundo lugar, devem ir ao encontro do verdadeiro Povo de Deus, que, precisamente por se ter mantido fiel à doutrina e à disciplina tradicionais da Igreja, se afastou destas iniciativas pastorais promovidas pela hierarquia.
Em alternativa, os cardeais e bispos que promovem a Assembleia Eclesial Universal de 2028 podem negar a realidade e apoiar a segunda hipótese, continuando a pensar que os resultados da escuta representam verdadeiramente o sensus fidei. Nesse caso, devem imitar a maioria dos seus irmãos alemães, que adoptaram abertamente todas as propostas heréticas do Caminho Sinodal alemão, tentando justificá-las teologicamente através da teoria modernista do desenvolvimento intrínseco do dogma.
O único caminho que não tem saída é o que foi adoptado pelos cardeais e bispos da Primeira Assembleia Eclesial, que continuaram a afirmar que o processo de escuta era representativo e uma expressão genuína do impulso que o Espírito Santo deseja para a Igreja, ao mesmo tempo que censuravam as suas expressões mais autênticas e as propostas mais radicais.
A única explicação para esta contradição seria argumentar que as vozes que emergiram durante a fase de escuta são de facto «proféticas», mas ainda minoritárias, e que, por isso, é necessário adiar a implementação das suas propostas até que a maioria dos fiéis esteja preparada para as aceitar. Foi esta a explicação dada em 2020 pelo Padre Antonio Spadaro S.J. em La Civiltà Cattolica para esclarecer o motivo pelo qual, na exortação apostólica pós-sinodal Querida Amazónia, o Papa Francisco não deu continuidade à proposta do Sínodo Pan-Amazónico de 2019 de ordenar homens casados (viri probati). Sendo o Padre Spadaro jesuíta, a explicação é dada de forma indirecta:
O Sínodo é, portanto, um lugar de discernimento no qual emergem propostas. O magistério pontifício que se exprime com as exortações apostólicas é um magistério de escuta de propostas, mas também de discernimento do espírito que as exprime, para além de qualquer pressão mediática ou maioria referendária. Além disso, avalia se o discernimento o foi realmente ou se se tratou de uma disputa; e avalia se existem ou não condições para decidir. Se não existem, o Papa, muito simplesmente, não avança, mas sem negar a validade das propostas. Pelo contrário, pede que o discernimento continue e deixa a discussão em aberto20.
É obviamente necessário moderar a velocidade com que marchamos em direcção ao objectivo final da revolução eclesial, esperando que a «transferência doutrinária que passa despercebida» à maioria dos católicos que assistem à missa dominical permita aos progressistas recuperar o ímpeto no futuro. Entretanto, os fiéis habituar-se-ão a uma prática sinodal que cria uma dissonância cognitiva entre a doutrina da Igreja e a sua realidade visível.
Esta aparente terceira via pode funcionar a curto prazo, mas revela-se insustentável a longo prazo. De facto, a minoria progressista sente-se traída, e com razão, e a maioria conservadora acabará por perceber que é vítima de pastores hipócritas, que ocultam ao rebanho o objectivo final do sinodal «caminhar juntos».
6) Conclusão: é imperativo pôr fim à aventura sinodal
Face ao exposto, é imperativo que, na medida das suas forças, o Papa Francisco abandone os seus planos de transformar a Igreja Católica, e a respectiva estrutura hierárquico-sacramental, numa Igreja sinodal, democrática e aberta ao espírito do mundo. Para tal, basta revogar a convocação da Assembleia Eclesial Universal de 2028, e de todos os eventos preparatórios intermédios.
Se o actual Pontífice não providenciar a isso antes de Deus o chamar a Si, a primeira iniciativa de quem for eleito seu sucessor no próximo conclave papal deverá ser precisamente esta.
O que está em causa é nada mais nada menos do que a indefectibilidade da Igreja nos seus três elementos constitutivos: a fé, os sacramentos e a sucessão apostólica.
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Notas:
- Comité de Escucha, Síntesis narrativa: La Escucha en la Primera Asamblea Eclesial para América Latina y el Caribe – CELAM – Voces del Pueblo de Dios, 21 de Setembro de 2021, p. 189: https://diocesisdeirapuato.org/wp-content/uploads/2021/11/Sintesis-Narrativa-FINAL-1-1.pdf.
- iVeja-se Ricardo Barreto, S.J. e Mauricio López Oropeza, «The First Ecclesial Assembly of Latin America and the Caribbean: Experiences of a Synodal Process», La Civiltà Cattolica, 21 de Fevereiro de 2022: https://www.laciviltacattolica.com/the-first-ecclesial-assembly-of-latin-america-and-the-caribbean-experiences-of-a-synodal-process/.
- Document for Community Discernment: At the First Ecclesiastical Assembly of Latin America and the Caribbean, Mexico City: CELAM, 2021, n.º 1, p. 7 (ebook), consultado a 8 de Abril de 2025: https://synod.org.pl/wp-content/uploads/2022/10/ddc-angielski-amerykanski.pdf.
- Ibid., n. 140, p. 78.
- Ibid., n. 143, p. 79.
- Ibid., n. 18, p. 18.
- Ibid., n. 128, p. 73.
- Ibid., n. 136, pp. 76-77.
- Ibid., n. 94, p. 53.
- Ibid., n. 16, pp. 16-17.
- Ibid., n. 34, p. 25.
- Pedro Barreto, S.J., «Testimonio del Cardenal Pedro Barreto, S.J. Asamblea Eclesial 26 de noviembre 2021», Asamblea Eclesial, 30 de Novembro de 2021: https://asambleaeclesial.lat/testimonio-del-cardenal-pedro-barreto-s-j-asamblea-eclesial-26-de-noviembre-2021/.
- Barreto and López, «The First Ecclesial Assembly».
- «Resultados de la ficha de trabajo 4 viernes 26 de noviembre—elaborados por la Comisión de Síntesis, Bogotá, Colombia, CELAM, s.d., consultado a 10 de Abril de 2025: https://cep.com.pe/wp-content/uploads/2021/11/AE-RESULTADOS.pdf, por amável concessão do Centro de Estudios y Publicaciones, Lince, Lima, Perù, 29 de Novembro de 2021: https://cep.com.pe/asamblea-eclesial-documentos-finales/.
- Toward a Synodal Church Going Forth Into the Periphery: Reflections and Pastoral Proposals Drawn From the First Ecclesial Assembly for Latin America and the Caribbean, trad. María Luisa Valencia Duarte, Bogotá: CELAM, 2022, p. 8: https://asambleaeclesial.lat/wp-content/uploads/2022/10/ingles.pdf.
- Ibid., n. 25, p. 18.
- Ibid.
- Ibid., n. 305, p. 111.
- Peter Seewald, Professor and Prefect to Pope and Pope Emeritus 1966-The Present, vol. 2 de Benedict XVI: A Life, London, Bloomsbury Continuum, 2021, p. 84.
- xx Antonio Spadaro, S.J., «Francis’ Government: What is the driving force of his pontificate?», La Civiltà Cattolica, 14 de Outubro de 2020: https://www.laciviltacattolica.com/francis-government-what-is-the-driving-force-of-his-pontificate/.
Publicado em: Tradizione Famiglia Proprietà