Ajude o site Cristãos Atrevimentos com qualquer valor

Quero Doar

A Real Irmandade do Senhor dos Passos da Graça e os Bens da Alma

18 de Março de 2025

Ibsen Noronha

Ibsen Noronha

A Real Irmandade do Senhor dos Passos da Graça e os Bens da Alma

A Alma é substância dotada de razão destinada a governar o corpo. Santo Agostinho assim a define no seu entusiasmante Diálogo A Grandeza da Alma1.

Na escala das naturezas criadas a Alma está em posição superior ao corpo. A alma busca as realidades inteligíveis, almeja o absoluto, procura o Bem Supremo.

Em 1588 o Pintor Santo, Luiz Álvares de Andrade2, alcançou do Cardeal-Arquiduque Alberto de Habsburgo, então Vice-rei, um breve de indulgências para todos aqueles que visitassem a Capela dos Senhor dos Passos no dia da procissão.

A imortalidade da alma e o seu destino eterno são temas de importância sem par na vida do Católico. Ao longo dos séculos a Santa Igreja ofereceu inumeráveis bens para fortalecer e enriquecer a alma.

A Irmandade católica visa, antes de tudo, favorecer à aquisição de tais inestimáveis bens. Os compromissos, mesmo advertindo, muitas vezes, para práticas exteriores têm como finalidade primacial favorecer o fortalecimento da alma na sua peregrinação neste mundo.

A privação dos bens da alma atrai as trevas ao espírito, na assertiva de um doutrinador francês do início do século XVIII3.

Nestas apressadas linhas buscarei chamar a atenção para apenas dois aspectos relativos aos bens da alma: as indulgências e a criação de capelas fúnebres.

Indulgências

A Irmandade do Senhor dos Passos da Graça recebeu, através de um Breve pontifício de carácter perpétuo datado de 13 de Abril de 1732, a condescendência indulgencial. A generosa concessão foi feita pelo Papa Clemente XII4. No Breve o Servus Servorum Dei considera a fragilidade da nossa mortalidade, a condição do género humano, e a severidade do juízo final...

O documento merece, ao menos, a leitura de um extrato:

Como quer que tivéssemos notícia que na Igreja chamada de N. Senhora da Graça do Arcebispado de Lisboa Oriental está canonicamente erecta uma pia e devota confraria de fiéis cristãos... da invocação de N. Senhor Jesus Cristo dos Passos, para louvor e honra de Deus Todo Poderoso, salvação das almas e socorro do próximo...

Confiados nós na misericórdia de Deus Todo Poderoso e na autoridade dos bem-aventurados apóstolos S. Pedro e S. Paulo, a todos e a cada um dos fiéis cristãos... que daqui em diante entrarem na dita confraria, se, verdadeiramente penitentes e confessados, receberem o SS. Sacramento no primeiro dia de sua entrada, lhes concedemos indulgência plenária. – Item aos confrades que ao presente são e pelo tempo adiante forem da dita confraria, se, verdadeiramente arrependidos, confessados e comungados, podendo fazer isso comodamente, ou ao menos contritos, no artigo da sua morte devotamente invocarem o SS. Nome de Jesus com o coração, não podendo com a boca, lhes concedemos indulgência plenária. – Além disso, aos mesmos confrades, do mesmo modo verdadeiramente arrependidos, confessados e comungados, que todos os anos a dita igreja no dia da festa principal da dita confraria, das primeiras vésperas até o sol posto, e aí fizerem piedosas orações a Deus pela exaltação da Santa Madre Igreja, extirpação das heresias, conversão dos hereges e infiéis, e pela paz e concórdia entre os príncipes cristãos, e saúde do Romano Pontífice, no dia que isto fizerem lhes concedemos perpetuamente, por autoridade apostólica, indulgência plenária, perdão e remissão de todos e de cada um de seus pecados...

O Breve é generoso e prevê, ainda, muitas outras formas para os fiéis confrades receberem os bens imprescindíveis para a salvação da alma.

A palavra indulgência deriva do latim indulgeo, ou seja, para ser gentil. É a remissão, total ou parcial, da pena temporal devida, para que seja feita Justiça a Deus. Tal poder é o das chaves – potestas clavium –, fundado na expressão de Nosso Senhor dirigida ao apóstolo Pedro: Eu te darei as chaves do Reino dos Céus: tudo o que ligardes na terra será ligado nos céus, e tudo o que desligardes na terra, será desligado nos céus (Mateus, 16:19). A chave de prata simboliza o poder temporal; a chave de ouro o poder espiritual. A magnífica união na atuação das duas chaves permite favorecer às almas no seu caminho para a eternidade.

No sacramento da Confissão a culpa do pecado é removida – os pecados são perdoados na absolvição. Assim o castigo eterno devido ao  pecado mortal fica remido. Mas ainda persiste a pena temporal exigida pela Justiça Divina, e essa exigência deve ser cumprida na vida presente, ou post-mortem, no  Purgatório. Uma indulgência oferece ao pecador penitente meios para cumprir esta dívida durante sua vida na terra, reparando o mal que teria sido provocado pelo pecado.

A doutrina Católica ensina que as indulgências são concedidas para reparar as penas temporais causadas pelo pecado, ou seja, para reparar o mal causado como consequência do pecado, através de boas obras, sendo que o pecado já foi perdoado pelo Sacramento da Confissão.

Há um equívoco comum no qual se imagina que as indulgências perdoariam os pecados, contudo, elas só perdoam a pena temporal causada pelo pecado. O fiel está sempre obrigado a fazer a Confissão.

A Indulgência plenária é o perdão total das penas temporais5.

O Supremo Tribunal da Penitenciária Apostólica é um dos três tribunais da Cúria Romana. Tem competência sobre o foro interno e sobre as indulgências. É o dicastério a que está atribuído tudo que concerne à concessão e uso das indulgências.

A 29 de Janeiro de 2000 o Penitenciário-mor Cardeal Baum publicou um documento intitulado o Dom da Indulgência. Nele adverte que para obter as Indulgências, tanto plenárias como parciais, é preciso que, pelo menos antes de cumprir as últimas disposições da obra indulgenciada, o fiel esteja em estado de graça.

Obras pias

A Magnanimidade da Igreja sempre favoreceu a recepção dos bens da alma também através das obras pias.

Na Igreja da Graça, em Lisboa, foram instituídos encargos pios por meio dos chamados vínculos de Capela6. A Irmandade dos Passos, conforme vontade expressa dos instituidores, foi nomeada administradora de tais encargos.

Apresento, à guisa de exemplo, dentre outras, a capela do Bispo de Hipónia, D. Frei João Botado, morto em 17157. Por testamento de 20 de Dezembro de 1714, encarregou a Irmandade da administração da dita capela, que possuía diversos encargos pios: missas, esmolas aos pobres, subsídio à igreja do Coleginho8... num total de 1.112$000 réis. A Irmandade manteve a administração por mais de cem anos, até 1817.

O Irmão Dr. José Galvão de Lacerda, Desembargador do Paço – que chegou a Chanceler-mor do reino no reinado de Dom João V – foi consultado sobre se a Irmandade deveria aceitar a testamentária do Bispo de Hipónia. Dá parecer positivo com ressalvas, asseverando ser acto de caridade e porque assim se exercita bem o estímulo para os fiéis terem mais devoção às confrarias e fiarem delas as suas disposições com alguma utilidade dos legados que lhes deixam...

Outra Capela9 a referir foi instituída por Manuel Aranha Pita e sua Mulher Tereza de Jesus, a 13 de Abril de 1763, extinguindo-se em 1879. Previa a Missa quotidiana pelas suas almas. A administração da Irmandade dos Passos recebeu dois contos de réis. Do rendimento pagava 64 mil réis a um capelão para a celebração do Santo Sacrifício. O instituidor também entregou 600 mil réis para as obras que deveriam ser feitas na capela do Senhor dos Passos, em Janeiro desse mesmo ano.

Uma Graça especial

A Graça é um dom gratuito e sobrenatural concedido por Deus que assim oferece os bens necessários para a salvação da alma. Afirmou São João Evangelista: Porque a Lei foi dada por meio de Moisés; a Graça e a verdade vieram por Jesus Cristo (João 1.17).

Existem inúmeras formas de receber Graças. A generosidade divina é inefável. As devoções propiciam e favorecem a recepção desse dom.

O primeiro Duque de Lafões, D. Pedro Henrique de Bragança, que foi por diversas vezes, em meados do século XVIII, Provedor da Irmandade10, no seu Testamento, deixou para o Senhor dos Passos da Graça um legado para que se fizesse um resplendor de ouro e prata, o mais precioso que se pudesse executar. No belo texto que expressava a sua última vontade afirmou: Deixo de esmola ao Senhor dos Passos da Graça, de quem desejo ser verdadeiro devoto, e na presença de cuja Imagem me fez Deus especiais favores... e, ainda refere que numa de suas doenças recebeu graças especialíssimas11. Mandou ainda que os seus testamenteiros dessem 400.000 réis para que a Mesa da Irmandade distribuísse aos Irmãos pobres.

A devoção sincera e o fervor favorecem imensamente à abertura necessária para recepção de copiosas Graças. As Graças fortalecem a alma e são o bem por excelência da vida sobrenatural.

As Irmandades são um meio privilegiado de obtenção de Graças, seja pelos Irmãos que a ela se dedicam generosamente, seja por toda a comunidade que pode, através do dogma da comunhão dos Santos, Communio Sanctorum, beneficiar dos bens de alma concedidos sempre em abundância às Irmandades fiéis à sua finalidade.

Pela união espiritual numa Irmandade, actuando como Igreja militante, formada pelos católicos que estão em estado de graça, reafirma-se o Credo dos Apóstolos, no qual uma família de almas labora em prol de muitos.

A espiritualidade alimentada pela devoção ao Senhor dos Passos da Graça abre, assim, de par em par, as portas para os Bens da Alma.

 

Notas:

1 SANTO AGOSTINHO, Patrística, Lisboa, 2017, vol. 24, p. 168.

2 A sua devoção às Almas do Purgatório era exemplar. Jaz enterrado no cruzeiro de São Roque.

3 Nicolas Delamare publicou a sua obra, inicialmente, no reinado de Luiz XIV. O Traité de la Police assegurava que a privação dos bens da alma jette les tenebres dans l´esprit, corrompt son coeur, & lui fait oublier ses principaux devoirs. Op. cit., Paris, MDCCX, tome I, Préface.

4 O Papa Corsini lutou contra o jansenismo e foi o primeiro pontífice a condenar a maçonaria na Encíclica In Eminenti de 1738.

5 Vide Can. 993 para a distinção entre indulgência parcial e indulgência plenária.

6 Sobre os vínculos de Capela em Portugal ver, por todos, MARIA de LURDES ROSA, As almas herdeiras : fundação de capelas fúnebres e afirmação da alma como sujeito de direito (Portugal, 1400-1521), Imprensa Nacional Casa da Moeda, Lisboa, 2005.

7 O Bispo e seu irmão Mendo de Foyos Pereira, que foi Secretário de Estado de Dom Pedro II, estão tumulados na Sacristia do Convento de N. Sra. da Graça. Cfr. DIOGO BARBOSA MACHADO, Bibliotheca Luzitana, Lisboa, MDCCLII, tomo III, p. 459.

8 Trata-se do Colégio de Santo Antão-o-Velho localizado na Mouraria onde, segundo Damião de Góis, estaria a mesquita. Ainda lá se encontra uma lápide que afirma ter sido a primeira casa da companhia de Jesus e o primeiro colégio para externos em Portugal. Os jesuítas instalaram-se no local em 1542 e o colégio foi fundado em 1553. O Colégio foi frequentado pelos filhos das grandes famílias de Portugal e recebeu o carinhoso diminutivo.

9 Ainda podem-se referir, fundadas na epigrafia do Convento da Graça, duas Capelas: a primeira instituída por Lopo Soares para sua Mulher, Dona Joana de Albuquerque. Para a Capela deixaram uma Missa quotidiana com dez mil réis de renda, a segunda, em letra gótica minúscula diz que os frades do mosteiro hão-de cantar sempre por Gonçalo Lourenço e por Gil Esteves Fariseu e sua Mulher duas Missas naquela capela. Além disso deveriam fazer sair três procissões por ano. Para tanto foi doada uma casa e uma tenda em Lisboa e alguns casais fora dos muros.

10 Eis os anos: 1734-1735; 1744-1745; 1750-1751 e 1757-1758.

11 Pe. ERNESTO SALES, Nosso Senhor dos Passos da Graça (Lisboa) – Estudo Histórico da sua Irmandade com o título de “Santa Cruz e Passos”, Lisboa, 1925, pp. 170-171.

Donativos