O ano 2000, cujo término marcou a passagem do segundo para o terceiro milênio da Era Cristã – com todo o significado intrínseco a essa passagem – se revestiu, na comunidade luso-brasileira, de um significado muito particular. Nesse ano se comemorou o 5° centenário do Descobrimento oficial da Terra de Santa Cruz.
Digo "descobrimento oficial" porque perfilo, com numerosos e bem fundamentados historiadores, a tese de que a Coroa portuguesa já conhecia a existência do continente sul-americano e que a chegada de Cabral ao Brasil não se deveu ao acaso dos ventos, mas correspondeu a um desígnio formal de D. Manuel.
De qualquer forma, o nascimento do Brasil para a História deu-se em 22 de abril de 1500. Esse nascimento se insere no contexto mais amplo da grandiosa epopeia das navegações lusas.
Tal epopeia constituiu, sem dúvida, um gigantesco empreendimento, muito bem planejado e executado do ponto de vista natural. Mas, como o espírito primordial era o de cruzada, esteve muito presente o aspecto sobrenatural. Do ponto de vista estritamente natural, aliás, e se considerarmos a desproporção entre os recursos de que Portugal dispunha e os grandes feitos que obrou no mundo inteiro naquela era de glória, teria sido impossível toda a gigantesca epopeia missionária e civilizadora de Portugal.
Transcrevo, a seguir, quatro textos extraídos da magnífica obra coletiva “A Virgem e Portugal” (Edições Ouro, Porto, 1967, 2 vols.). Os três primeiros são transcritos de “Descobrimentos e conquistas – Maria, Senhora das Missões”, do Pe. António Brásio. O último é de “Nossa Senhora e as crises nacionais”, de Luís Chaves.
* Merece assinalar–se João Homem, da armada de D. Francisco de Almeida, que uma tormenta desgarrara e perdera uma noite, antes do cabo de Boa Esperança. Ao mestre da sua caravela e ao despenseiro que, chorando, se lamentavam que não tinham mais de meia pipa de água a bordo, respondeu: "Vilãos, por que tendes tão pouca fé naquela Senhora que ali está!" (e isto dizia olhando para uma imagem de Nossa Senhora do Rosário de que era muito devoto). Por que não credes que vos dará água, pão, ouro e prata: ora, calai-vos que ela nos dará mantimento"! E dali foram ter a uma ilha que lhes proporcionou muito pescado, água e lobos marinhos, a que chamaram de João Homem. (Fernão Lopes de Castanheda, História do Descobrimento & Conquista a Índia pelos Portugueses)
* Ainda no mesmo ano [de 1507], em Cananor, obrou Santa Maria na fortaleza, para com os Portugueses, milagre que as Crónicas do Reino deixaram assinalado. Cercados pela chusma da moirama, "vieram a tanta estreiteza de fome, que não ficou na fortaleza cão, gato e ratos, que tudo não fosse mantimento". "Mas Nossa Senhora, a quem os nossos se iam encomendar na ermida sua da invocação da Vitória, que D. Lourenço [de Almeida] fez na ponta da terra, a quinze de Agosto, em que a igreja celebra a festa da sua Assunção, obrou com eles suas misericórdias com este feito mais milagroso, que natural: alevantou-se o mar em fúria, e cada vez que o rolo dele descarregava na terra da ponta, onde estava esta sua ermida, lançava dentro dele grande número de lagostas, que os nossos houveram por maná enviado do Céu; porque não somente aos sãos, mas aos doentes deram vida; e foi tanta a cópia, que tiveram nelas uns dias que comer". (João de Barros, Dec. II, Liv. I, Cap. V)
* Como nunca se ouviu dizer que quem à Virgem recorre fosse por ela jamais desamparado, os nossos reis, que sempre lhe confiaram o segredo e o êxito das suas empresas, viram-se por toda a parte e sempre seguros da sua protecção e auxílio. Pois não chegou ela a tomar, como conta Frei Gaspar de São Bernardino, o leme de piloto, em desfeita tempestade? Numa dessas viagens da Índia, sempre cheias de perigos, um dos passageiros que na nau vinha a caminho do Reino, "pusera um retábulo que trazia da Senhora da Penha de França, na cadeira do Piloto, para que ela governasse como Mãe de Misericórdia; assim o fez três dias e três noites, sem a nau neles atravessar nunca, nem tomar de luva, ou por davante, o que certo foi evidentíssima maravilha".
* O rei de Cochim permitiu que os Portugueses construíssem uma fortaleza. O rei de Calecute, o Samorim, hostil aos Portugueses, irritou–se com esse facto e decidiu atacar Cochim. O rei de Cochim procurou dissuadir Duarte Pacheco Pereira de colaborar na defesa, porque o viu com uma centena de soldados, quando o Samorim atacaria com forças incomparáveis. O célebre guerreiro, a que Luís de Camões chamou o Aquiles lusitano, recusou retirar de Cochim. Poderia limitar a recusa, que lhe parecia mesquinha, se dissesse apenas: – Não. Manifestou, porém ao soberano a confiança dos grandes corações. Era o Pacheco fortíssimo de Camões.
– "Não desanimeis, senhor. A verdadeira força não está nas armas, nem nos exércitos; está no poder de Deus. Espero que Ele confunda o Rei de Calecute. Quanto ao resultado desta guerra, os meus homens são tão esforçados que espero desbaratá-lo sem outra ajuda".
De facto, Duarte Pacheco Pereira dirigiu-se ao passo de Cambalão no dia 16 de Março de 1504; aí esperou a esquadra do Samorim, que derrotou rapidamente, obrigando-o a retirar.
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É útil rememorar isso, especialmente em nossos dias, em que tantas vezes somos tentados a nos envergonhar do nosso passado glorioso.
NR: Este artigo foi escrito na ortografia original em uso no Brasil.