Viver à Lei da Nobreza?
O tema da Missão das elites abre enormes horizontes. Poder-se-ia dialogar, como fazia Platão, pelas tardes da eternidade sobre a Missão das elites numa época de crise moral.
Apenas anunciando o título surgem, de chôfre, diversas questões que sugerem as mais variadas reflexões e, até, divagações.
A Missão das elites… que é uma Missão? Têm as elites uma Missão? Sobretudo nesses tempos de penúria igualitária haveria lugar para falar, especular, em torno de uma Missão das Elites?
Época de Crise moral… que é uma crise? Lemos e ouvimos todos os dias a palavra crise seguida da qualificação económica; mas então há uma crise moral? Que moral está em crise? Na ditadura do relativismo em que vivemos vale à pena voltar o nosso pensamento para analisar o mundo moderno sob o prisma da moral?
Essas são algumas das muitas interrogações suscitadas simplesmente à partir do tema proposto para uma breve reflexão.
Mas, tempus fugit1! E importa escolher algum caminho para trilhar tendo sempre em vista o enorme horizonte oferecido pela temática.
Parece-me que enriqueceria o debate procurar distinguir as elites autênticas das inautênticas; as verdadeiras elites das falsas elites; as elites das contra-elites.
Sugiro, então, tratar, a largos traços, dessa distinctio.
Perspectiva histórica
Antes de tudo é preciso considerar que o mito igualitário, portanto, aquele que considera a única forma de justiça a categórica igualdade, seja no campo social, seja no campo político, seja no económico, tomou relevo na transição do século XVII para o século XVIII – aquele mesmo século de enorme crise de consciência europeia, no impressivo título da celebrada obra de Paul Hazard.
Com a aplicação das elucubrações cerebrinas dos iluministas durante a Revolução Americana e, em seguida, pela cruenta Revolução Francesa afirmou-se categoricamente que qualquer desigualdade social implicava numa situação insuportavelmente injusta.
À guisa de exemplo podemos citar a obra do Visconde de Tocqueville, A democracia na América, que apresentou a sociedade americana como o modelo de igualdade social. Não faltou visão romântica ao aristocrata francês.
Para além disso a expressão classe social tornara-se categoria de pensamento sob a óptica do marxismo. E a expressão aristocracia, seja como forma de governo, seja como estilo de vida, adquiriu uma conotação obscena para os ditos marxistas.
Todavia, a sociedade sem classes propugnada no século XX pelos asseclas do materialismo histórico foi contestada pela própria natureza… Chassez le naturel, il revient au galop. (Naturam expelles furca, tamen usque recurret – afirmou Horácio).
Interessante notar, por exemplo, que desde a segunda metade do século XX foram publicados um sem-número de estudos por importantes scholars americanos denunciando a impossibilidade de interpretar a história dos EUA com honestidade sem conhecer a acção das elites e reconhecer a profunda hierarquização da sociedade americana.
Encontrei, numa investigação sumaríssima, pelo menos vinte obras de fôlego2.
A historiografia luso-brasileira, nos últimos anos (sobretudo à partir das celebrações dos 500 anos do Descobrimento do Brasil) tem dedicado atenção ao tema da importância crucial da acção das elites, em especial da nobreza, na obra sem par da expansão portuguesa pelo mundo.
Digo e repito, sem par! – referindo não historiadores lusos ou brasileiros, mas ingleses, sul-africanos e italianos que consideram absolutamente inexplicável a obra de Portugal na História da humanidade. Não há, de facto, proporcionalidade entre a causa e o efeito. Portugal se excedeu em muito na dilatação da Fé e do Império. Explicação natural realmente não há. A História apenas pode relatar, estupefacta, a gesta dos lusitanos. Somente uma Teologia da História poderia, quiçá, resolver este enigma. Contudo, não é acerca disso que fomos chamados a reflectir…
Mas, de facto, alguma atenção académica tem sido voltada para o papel, importante e mesmo crucial, desempenhado pelas elites portuguesas no momento em que Portugal deu novos mundos ao mundo.
Entretanto, hoje, existe uma elite capaz de acções grandiosas, cheias da sua proverbial generosidade e ousadia? Existem elites? Se a resposta é negativa seria evidentemente inútil continuar a reflectir. Assim, a premissa fundamental para continuarmos esta breve exposição é: existem elites hoje! Elites capazes de grandes coisas! Mesmo que o igualitarismo tenha avançado e não se possa negar uma enorme pressão psicológica contra essas elites; mesmo que não seja possível negar até uma certa timidez na afirmação dessas elites na maioria dos ambientes hodiernos; mesmo que não seja racional negar uma boa dose de decadência em membros dos grupos de elite; mesmo apesar de tudo isso e de muito mais, existem elites em nossos dias! Elites capazes de grandes feitos!
Conceito de elite
Tentemos, então, fazer uma achega ao conceito de elite.
Numa primeira aproximação, poder-se-á dizer que elite é um conjunto de pessoas de escol, com certo brilho especial, que se destacam, enquanto indivíduos, da massa de pessoas que constituem uma comunidade. Este conjunto não será tão-somente uma realidade numérica. Não seriam grandes homens considerados isoladamente, sem relações pessoais entre si, mas um autêntico grupo que se relaciona e tem suficiente vida e assiduidade para que a convivência dos membros exponenciais acabe por formar um ambiente, principal habitat psicológico e intelectual das pessoas que o compõem. Que produz uma estética de viver.
Afirme-se, pois, que a elite não é uma mera justaposição de pessoas eminentes. Em verdade poderá ser considerada como constituída assim que as pessoas eminentes mantêm contacto e relações, produzindo através de uma espécie de osmose de valores, um destilar-se de uma cultura superior que, por sua vez, é uma legítima síntese dos valores intelectuais e morais de todos os componentes deste grupo exponencial.
A cultura produzida por uma elite autêntica é o seu elemento fundamental e essencial.
Importa assinalar que a cultura autêntica no Ocidente somente poderá ser a cultura cristã. Os ambientes criados pelos membros das elites autênticas devem estar nimbados pela virtude, e trata-se da virtude cristã.
Sendo seguro que o convívio de uma sociedade que seja fiel à sua autenticidade estará firmado nos valores cristãos e produzirá, naturalmente, refinamento. O refinamento cultural é apanágio de elites saudáveis, faz parte do desejo natural de aperfeiçoamento do ser humano.
Figuremos um homem que enriquece. Neste momento se lhe apresentam dos caminhos a seguir: ou bem é assimilado pelas elites autênticas, ou poderá seguir o caminho mais fácil – viver à mercê do seu tempo e aderir aos hábitos, maneiras e formas de viver sob a aguilhão das doutrinas revolucionárias, igualitárias e, não poucas vezes, anti-cristãs.
Note-se bem: o processo de assimilação de alguém à uma elite tradicional exige uma espécie de metanoia sócio-cultural. Urge queimar navios. Assim sendo, em uma ou duas gerações, a assimilação é completa.
Distinga-se, pois, elites autênticas das inautênticas. Estas geralmente possuem dinheiro e gastam sem travões; gostam de aparecer sob os holofotes da imprensa e de escândalos, para além possuírem um ideário demagógico liberal.
O tema proposto se revela fascinante, mas o benevolente leitor já deve haver produzido, através das minhas afirmações, um sem-número de objecções. Aliás não pode ser outra a reacção.
O tema fascina, mas é espinhoso, tendo em vista as muitas matizações e nuances necessárias a cada momento.
O "jet set"
Também como exemplo expressivo de elite inautêntica, cumpre discernir o que a linguagem moderna designa com a expressão de jet set. Esta indica os mais ricos – de todos os tipos – que passam o seu tempo a gastar e a se divertir. O jet set pode incluir uma princesa real, um jogador de futebol, uma estrela de cinema, etc. As pessoas mais díspares entre si figuram no jet set, desde que tenham dinheiro em quantidade que lhes permita gastá-lo desmesuradamente.
Portanto, o que caracteriza o jet set é ser abastado com vontade de gastar e aparecer aos olhos do público. Eis a equação: dinheiro de roldão + vontade de gastar + vontade de aparecer = jet set. E os média se apresentam bastante nocivos em suas acções nesta matéria, pois miram seus holofotes quase exclusivamente sobre o jet set, olvidando costumeiramente as elites tradicionais. Generosa para o jet set, tem por hábito os meios de comunicação dar-lhe grande publicidade. Por sua vez é negligente quanto às elites fiéis às tradições. Cheira um pouco a ressaibo, um tanto a iniquidade.
Afirmamos: a jet set é uma caricatura da elite autêntica!
Este aspecto caricatural nota-se não só nas pessoas, mas também nas decorações e nos ambientes típicos do jet set, profundamente marcados pelo predomínio do desejo de manifestar riqueza, e não pela distinção ou pelo bom gosto. São ambientes que, ao lado de uma nota de opulência e extravagância, apresentam um luxo que nunca é aristocratizante, mas, isto sim, vistoso e demagógico. Tais ambientes também são marcados pela conversação fútil e muitas vezes, imoral.
Viver à Lei da Nobreza
Uma elite autêntica vive à Lei da Nobreza. Viver à Lei da Nobreza é uma expressão que diz muito, sem muita precisão. Não vale à pena tentarmos tornar rigorosa uma expressão tão rica e tão cheia de facetas. Seria inútil buscar positivar o que é eminentemente consuetudinário.
Para os nossos dias importa dar relevo à ideia de que viver à Lei da Nobreza implica sacrifício, generosidade e fidelidade aos princípios que forjaram a Civilização Ocidental Cristã.
Creio que as autênticas elites precisam ter como divisa a frase de Paul Claudel, que afirmava que a Juventude não fôra feita para o prazer, mas sim para o heroísmo. As elites fiéis aos grandes princípios serão, assim, sempre jovens e viverão à Lei da Nobreza.
Elites, Moral e Bem Comum
A Missão das Elites numa época de crise Moral
A crise moral em que vivemos, para um observador razoável é produzida pela negação dos valores cristãos. Seja radicalmente com a promulgação de leis, seja subtilmente quando se criam ambientes onde não se quer lutar e, até, psicologicamente, se nega a necessidade de resistir aos erros do mundo moderno.
Encerra-se esta breve reflexão chamando a atenção para o problema da crise moral em que vivemos, que explodiu, sobretudo, nos anos sessenta e teve como marco a revolução da Sorbonne em Maio de 68. As filosofias desde então divulgadas para a juventude são dissolventes e produziram os diversos males que, no processo da História, vêm se agravando até os nossos dias.
A crise a que aludimos e difícil de negar e atingiu também a estrutura da Igreja Católica, coluna e fundamento da moralidade e da boa ordenação das sociedades.
Os erros do mundo moderno foram fulminados pelo Papa São Pio X há 100 anos, mas – com muita dor o dizemos – continuou a minar a sociedade e foram divulgados por aqueles que deveriam condená-los, causando, evidentemente, perplexidade.
Qual a missão das elites numa época de crise moral?
Resistência aos erros do mundo moderno através de uma adesão incondicional à doutrina tradicional da Igreja e a sua defesa em todos os ambientes, custe o que custar! Esse é o apanágio (propriedade característica) das elites autênticas.
Está na natureza das elites o servir. A finalidade da sua acção não pode ser outra senão o Bem Comum.
A fidelidade à sua missão depende desses dois aspectos: fidelidade à Igreja Católica em todos os momentos e constante e perpétua actividade em prol do Bem Comum.
Esse é o programa da Contra-Revolução. A Missão das elites é fazer a Contra-Revolução, viver a Contra-Revolução.
1 A expressão foi usada pela primeira vez nas Geórgicas por Virgílio: Sed fugit interea fugit irreparabile tempus ("Mas ele foge: irreversivelmente o tempo foge").
2 Vance Packard, The Status Seekers - New York, David McKay Company, 1959; Philip Burch, Elites in American History - New York, Holmes & Meier, 1981, Vol. 3; Peter W. Cookson Jr. e Caroline Hodges Persell, Preparing for Power. America’s Elite Boarding Schools - New York, Basic Books, 1985; Thomas R. Dye e L. Harmon Zeigler, The Irony of Democracy: An Uncommon Introduction to American Politics - Belmont, Ca., Duxbury Press, 1972; C. Wright Mills, The Power Elite - New York, Oxford University Press, 1956; Michael G. Burton e John Higley, "Invitation to Elite Theory: The Basic Contentions Reconsidered", in: G. William Domhoff, Thomas R. Dye, eds., Power Elites and Organizations -Newbury Park, Ca., Sage Publications, 1987; Michael Burton e John Higley, "Invitation to Elite Theory. The Basic Contentions Reconsidered"; Pierre L. van den Berghe, Man in Society. A Biosocial View - New York, Elsevier, 1978; Robert Nisbet, Twilight of Authority - New York, Oxford University Press, 1975; Robin M. Williams Jr., American Society. A Sociological Interpretation - New York, Alfred A. Knopf, 1960; Seymour Martin Lipset e Reinhard Bendix, Social Mobility in Industrial Society – Berkeley, University of California Press, 1967; Suzanne Keller, Beyond the Ruling Class: Strategic Elites in Modern Society - New York, Random House, 1963; Robert A. Nisbet, The Social Bond. An Introduction to the Study of Society - New York: Alfred A. Knopf, 1970; G. William Domhoff, The Higher Circles, The Governing Class in America - New York, Vintage Books, 1971; W. Lloyd Warner, American Life, Dream and Reality – Chicago, University of Chicago Press, 1968; Herbert von Borch, The Unfinished Society – Indianapolis, Charter Books, 1963; Edward Pessen, Status and Social Class in America, in: Making America, edited by Luther S. Luedtke.