Será acerca do problema das migrações no Ocidente que irei dar um brevíssimo panorama jus-histórico, tendo como objecto o pensamento jurídico. Para tanto é importante fixar a matriz cultural da Civilização Ocidental. A Filosofia grega, o Direito Romano e a Revelação Cristã são, iniludivelmente, o fundamento da cultura Ocidental. E será sobre este fundamento que irei tecer algumas considerações.
Nas Cidades-Estado gregas os estrangeiros não gozavam, assim como hoje, de determinados direitos do cidadão. Em Atenas existiam três categorias de estrangeiros, cujas situações jurídicas eram diferentes: Os isótelos, os metoikos, e os xénos. Os isótelos eram os pertencentes a unidades políticas com que Atenas celebrara acordos e por isso podiam exercer os poucos direitos neles previstos. Os metoikos eram aqueles que Atenas permitira que fixassem residência. Eram obrigados a pagar uma contribuição à cidade e defendê-la em caso de guerra. Não podiam contrair casamentos com cidadãos. O terceiro grupo é o dos xénos, aqueles estrangeiros de passagem, que não possuíam qualquer proteção legal. Decorrido determinado tempo de permanência na cidade, o xénos devia fazer-se reconhecer como metoiko, ou deixar Atenas.
Aristóteles era um meteco, aliás tratado assim algumas vezes, nas fontes, pelo seu mestre Platão. Na sua Política afirmou que há duas maneiras de possuir a cidadania, a absoluta – quando pode tomar parte em todos os negócios que tocam os cidadãos, como conselhos e tribunais – e de forma parcial, nomeadamente por viverem na Cidade, mas sem a capacidade de exercer funções de cidadania. Portanto, para o Estagirita, as distinções são inerentes ao problema dos estrangeiros.
Em Roma a ideia de cidadania também estava vinculada ao exercício de direitos políticos e civis. Distinguia-se o cidadão romano, pelo status civitatis. E o Direito Romano concedeu especial proteção aos estrangeiros. A latinidade foi a primeira forma de proteção, devido aos vínculos étnico-culturais entre Roma e os povos do Latio, vínculo fundado sobre questões territoriais e culturais. A comunhão cultural existente entre Roma e as demais cidades latinas permitiu a construção de uma comunhão também jurídica, na qual se reconhece aos latinos um conjunto de direitos que os diferenciam das pessoas oriundas de outras cidades, ou seja, que os diferenciam dos demais estrangeiros. E a língua latina cimentou esta proximidade, criando a unidade desejada.
Os latinos gozavam do ius conubii e do ius comercii, e poderiam tornar-se romanos fixando domicílio em Roma. Tal os distinguia dos peregrinos – estrangeiros com quem não havia necessariamente uma comunhão cultural, estes eram a maioria dos povos conquistados.
As primeiras formas de regular as relações entre Roma e outros povos, tinha carácter essencialmente jurídico-religioso e promanava do ius fetiale. Os sacerdotes feciais sempre por meio de rituais, tratavam da guerra (declaração, procedimento) e da paz (tratados – foedera). À guisa de exemplo refira-se os conceitos, no ius fetiale, de reparação pelas agressões sofridas e a inviolabilidade dos embaixadores.
A expansão do império romano fez com que houvesse a incorporação de diversos povos com diferentes costumes e tradições jurídicas. À medida que o império se expandia, para a sua coesão e desenvolvimento, fazia-se necessário conceder certos direitos aos povos vencidos. Ao passo que o Império Romano se alargava para além das fronteiras da Península Itálica, o antigo e tradicional ius civilis reservado, a priori, aos romanos, aos poucos se foi adaptando, de maneira a alcançar os outros povos incorporados ao império. E desenvolveu-se, assim, o ius gentium a partir do século II a.C., com normas extremamente plásticas – e menos ritualizado – cujos destinatários principais eram os peregrini.
Com o correr dos séculos o processo de romanização deu grande unidade aos povos que constituíram o Império Romano. A cidadania foi estendida e consolidou-se o Império. Mais uma vez o a língua latina foi elemento precioso para a integração dos povos.
Mas surgira dentro do Império um novo fenômeno, uma força nova dotada de potência, proveniente de uma província a Oriente. Trata-se da religião Cristã.
São Paulo representa esta nova força: homem de cultura grega, cidadania romana e doutor da Lei Antiga, converte-se ao Cristianismo. Na sua Carta aos Gálatas afirma: não há, pois, judeu, nem grego, escravo ou livre, varão ou fêmea, pois sois todos um em Jesus Cristo.
Na Idade Média ergueu-se a res publica Christiana na Europa, fundada na unidade da Fé e do Direito. A ideia de organização política diluiu-se numa nova concepção: a de Cristandade, ou seja, uma associação de homens unidos em torno da fé em Cristo e que se subordinavam a dois distintos poderes: o poder espiritual e o poder temporal.
A Universidade, instituição basilar, criada na Idade Média, reunia estudantes das mais diversas regiões da Cristandade, servindo-se de uma língua sagrada que era o meio para a busca da Verdade. O princípio da unidade na diversidade se apresentou limpidamente nesta corporação na qual os membros formavam uma grande família de almas, fruto dos grandes princípios que a enformavam. Muitos luzeiros dedicaram as suas vidas à Universidade, dentre os inúmeros doutores destaca-se em especial aquele que construiu uma verdadeira Catedral teológica. Na Divina Comédia este Doutor guia Dante ao Paraíso. No Canto X o poeta encontra 12 Doutores da sabedoria liderados pelo Doutor Angélico.
Santo Tomás de Aquino, no século XIII alcançou o ápice do pensamento cristão. E na sua obra tratou do problema das migrações. Afirmou que o povo pode ter dois tipos de relações com os estrangeiros: na paz ou na guerra. Desenvolve o seu pensamento na Suma Teológica I-II, q. 105, a. 3.
Distingue, assim, os imigrantes, considerando não serem todos iguais. Logo, as relações com os estrangeiros não são todas iguais: algumas são pacíficas outras são bélicas. Cada povo deverá decidir que tipo de imigração será considerada pacífica. Esta, evidentemente, será benéfica, servindo o Bem comum. Porém, com extremo realismo assevera existir uma imigração que será hostil e, desta forma, prejudicial. A rejeição de certos fluxos migratórios, na construção tomista seria a manifestação de Direito Natural à legítima defesa contra o que possa ser prejudicial ao Bem comum, ou seja, à Salus publica.
Referindo-se à imigração pacífica invoca duas passagens do Êxodo: “Não usarás de violência contra o estrangeiro residente nem o oprimirás” (22, 20); e “Não oprimirás um estrangeiro residente” (23, 9).
Está, pois, claramente reconhecida a possibilidade de os estrangeiros viverem pacificamente e o contributo benéfico que podem ter para o Bem comum. Devem ser tratados com caridade, respeito e cortesia – dever de todas as pessoas de boa vontade. A lei deverá proteger o estrangeiro de qualquer violência.
Citando Aristóteles, Santo Tomás afirma que os estrangeiros que queiram ser recebidos em plena comunidade de vida e culto, integrando-se com o povo que os acolheu, contudo, devem observar determinadas formalidades, e a sua admissão não deve ser imediata. E condicionava, assim a migração pacífica. Para aqueles que pretendiam instalar-se a condição seria: a vontade de integrar-se de forma perfeita na vida e na cultura daqueles que acolhiam.
Para além disso o acolhimento não devia ser imediato. A integração é um processo que demanda tempo. Os recém-chegados precisam se adaptar à nova cultura; e Santo Tomás cita novamente Aristóteles, que afirma que este processo pode levar de duas a três gerações.
E explica por quê: “O que se compreende, devido aos múltiplos inconvenientes ocasionados pela participação prematura dos estrangeiros na gestão dos assuntos públicos; com efeito, antes de se terem firmado no amor pelo povo, poderão empreender alguma coisa contra ele.”
Parece perfeitamente lógico o ensinamento tomista. A vida num país desconhecido é marcada por descobertas que são obrigatoriamente lentas. Os costumes e tradições precisam ser conhecidos, respeitados e até defendidos e, idealmente, amados por aqueles que chegam. Isto demanda Tempo – este grande mestre que régle bien les choses…
A ação do tempo se exerce de mil maneiras, todos os anos as estações se sucedem; nos séculos conduz ao desenvolvimento, grandeza e decadência das nações, ascensão e queda dos povos, e nas nossas vidas dá-se o mesmo. Devemos obedecer ao tempo como a natureza o faz…
Ao refletir brevemente sobre o problema das migrações, sob a perspectiva jus-histórica, surgirá primeiramente uma suspeita: a especulação sobre o Direito e a Justiça, alicerce da nossa Civilização, não terá oferecido uma solução sábia ao problema? Talvez daí surja a convicção de que o abandono, ou a negação, senão a apostasia civilizacional seja o verdadeiro e principal obstáculo a ser vencido para a edificação da Cidade.